A importância ecológica de uma vida solitária
A organização coletiva é uma estratégia de sobrevivência observada em muitas espécies, das formas de vida microscópicas até alguns dos maiores animais conhecidos. Mas indivíduos solitários – aqueles deslocados, que não seguem as tendências do grupo – são quase tão comuns quanto, e, de acordo com um estudo publicado no último mês de março no periódico Plos Biology, os solitários podem servir também a um propósito crucial para a conservação da espécie. A descoberta foi possível graças a experimentos realizados com a ameba Dictyostelium discoideum na Universidade de Princeton, em Nova Jersey, Estados Unidos, por uma equipe multidisciplinar e internacional que contou com o pesquisador Ricardo Martinez-Garcia, professor SIMONS-FAPESP no ICTP-SAIFR e no Instituto de Física Teórica da UNESP, em São Paulo.
Desde os movimentos de migração coletiva feitos por algumas espécies de aves ou mamíferos, até o florescimento sincronizado de certas plantas, ecólogos sempre observaram a existência de certos indivíduos de um grupo que parecem se recusar a seguir o mesmo comportamento da maioria. Do ponto de vista biológico, estes solitários sempre foram encarados como pontos fora da curva, isto é, casos de comportamento anômalo, erros na tentativa de coordenar uma ação coletiva complexa. No entanto, o artigo publicado na edição de 19 de março no periódico Plos Biology sugere que tal comportamento pode também fazer parte de uma estratégia biológica de sobrevivência e promoção de diversidade.
A vida da ameba D. discoideum possui duas fases, marcadas por uma manobra de sobrevivência peculiar: enquanto as amebas estiverem inseridas em um meio com disponibilidade de alimento, vivem como organismos unicelulares individuais, porém, ao encararem a escassez, as amebas iniciam um movimento auto-organizado de agregação, formando um organismo multicelular em formato de um caule com uma aglutinação de amebas em forma de esporos na sua ponta. As células que formam o caule acabam morrendo, mas aquelas no topo possuem maior chance de acabar entrando em contato com insetos ou animais passageiros e assim serem transportadas para um novo local, com maior quantidade de alimentos disponíveis. Muitos estudos têm focado no entendimento da transição de fases do ciclo de vida dessa ameba, mas pouca atenção havia sido dada até então às células solitárias.
Um dos autores do trabalho, o Dr. Ricardo Martinez-Garcia dedica-se à área da física aplicada à biologia, buscando entender sistemas ecológicos do ponto de vista da física estatística: “Não procuramos o comportamento individual de cada uma das células, plantas ou animais, mas o que realmente tratamos de descrever com precisão são as interações [entre as componentes do sistema e, a partir delas entender como surgem os padrões que observamos na escala macroscópica.”, explica o professor em entrevista concedida por videoconferência. No caso da D. discoideum, Martinez-Garcia e seus colaboradores usaram essa abordagem para descrever o mecanismo de transição entre as fases unicelular e multicelular, e assim foram capazes de criar um modelo que leva em conta inclusive as amebas solitárias que não se envolvem no processo de transição.
Quando perguntado sobre o funcionamento deste modelo, o Prof. Martinez-Garcia explica que nesse processo de transição, a comunicação entre as células se dá por sinais bioquímicos: uma vez que o alimento do ambiente começa a se esgotar, a célula passa a secretar substâncias que, quando detectadas pelas suas vizinhas, podem provocar o início do processo de agregação. “A nossa hipótese para a origem dessas amebas solitárias é uma resposta tardia, que ocorre por algum motivo que não identificamos molecularmente. Quando elas vão responder ao sinal, já não há mais uma massa crítica [nas suas vizinhanças]. A agregação precisa de um número de células grande, com duas ou três não tem início o comportamento coletivo. (…) Como há uma falta de sincronia na resposta, as que responderem mais tarde, de certa maneira, chegarão atrasadas para o comportamento coletivo”. Baseando-se nisso, construíram um modelo matemático que leva em consideração duas escalas de tempo: o tempo que todo o processo de agregação leva para ser completado, e o tempo que uma célula pode levar para responder ao sinal bioquímico. Se o tempo de resposta de uma célula é maior do que o tempo médio no qual todo o resto da população se agrega, a célula sobra como um indivíduo solitário.
Isso mostra que os indivíduos solitários, ao menos no caso da ameba D. discoideum, não são simples resultado de um processo aleatório ou fora do controle do próprio organismo – pelo contrário, eles surgem pelo próprio processo coletivo de auto-organização. E isso significa que a seleção natural poderia estar escolhendo esse comportamento, isto é, o comportamento solitário pode ser uma característica passada adiante no processo de reprodução, com possíveis consequências ecológicas. “É uma mudança radical na maneira como se estuda comportamentos coletivos na natureza. Ao menos nessas amebas, temos evidência experimental de que os indivíduos solitários não são erros. Eles certamente estão regulados pelo organismo, e poderiam ter um papel muito importante na ecologia e na evolução da espécie. Essa é a maior mensagem.”
O professor continua explicando que, por não estarem tão envolvidos no comportamento social, um dos papéis fundamentais que os solitários podem estar desempenhando é que, caso os esforços coletivos não sejam suficientes para a sobrevivência da população, ou caso esta seja destruída no processo por algum agente externo, aqueles que não participaram da mobilização do grupo serão sobreviventes com a capacidade de reconstruir e dar continuidade à espécie. “Por exemplo, o bambu tem um período de florescimento que é muito fechado – numa parte muito específica do ano – mas que também não é perfeito. Alguns produzem as flores mais tarde ou mais cedo que o resto da população. Nisso temos uma conexão muito mais clara de se fazer: imagine que todas as flores crescem no mesmo dia, se neste dia fizer um sol muito forte, nevar ou qualquer coisa assim, toda a população vai morrer. Mas se você tem esses indivíduos não sociais que por alguma razão produzem as flores um mês antes ou depois, você de certa maneira tem uma distribuição do risco.”
Os mecanismos por trás do surgimento de solitários certamente diferem ao se olhar para sistemas de espécies diferentes. Enquanto o modelo criado neste trabalho é capaz de descrever o processo para a D. discoideum, com direito a evidências experimentais, em outros reinos da vida natural os mecanismos por trás disso continuam desconhecidos. “Infelizmente trabalhar com pessoas ou com animais maiores é muito mais complicado. Mesmo com a ameba a experimentação foi extremamente complexa.”, explica. “Nós procuramos muitos exemplos na natureza. Tem, por exemplo, os gnus: eles fazem migrações muito grandes, nas quais a população coordena entre si para se mudarem todos juntos. Mas quando ecólogos seguem essas populações, veem que alguns animais ficam para trás ou não tomam parte da migração coletiva. Outro exemplo são gafanhotos: quando você tem muitos gafanhotos juntos há uma mudança de comportamento, eles transicionam de solitários para sociais. Mas se você observa por muito tempo um grupo muito grande deles, nem todos fazem essa transição.”
“Mesmo na população de humanos temos os ‘do contra’: são pessoas que vão contra opiniões gerais. Se você quiser extrapolar, podemos ficar no contexto da formação de opinião e tendências sociais. [Mas] acho que isso é muito mais hipotético. (…) Nós sabemos que no mundo natural temos exemplos mais claros.” Com uma última ressalva, o professor ainda faz uma breve consideração sobre a pandemia do vírus Sars-Cov-2: “Temos um caso muito claro com a pandemia. A não-socialidade agora é muito importante para preservar a sociedade, se quisermos olhar assim. Mas a extrapolação para humanos fica totalmente fora do objetivo do estudo.” Mesmo não sendo completamente extrapolável para outras espécies de seres vivos, os resultados que o Prof. Martinez-Garcia e seus colaboradores apresentam neste trabalho implicam numa nova maneira de se olhar para a ecologia. Além disso, é um grande passo inicial que incentiva a pesquisa com grupos de seres vivos cada vez mais complexos, como insetos, plantas e vertebrados. Agora se entende melhor o que são esses indivíduos solitários, antes considerados erros aleatórios da natureza. “É o que se falava antes: ‘eles estão aí, mas não são importantes’. Agora a pergunta mudou: na verdade eles fazem parte do comportamento coletivo, então que papel eles desempenham de um ponto de vista ecológico e evolutivo?”.
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Novos resultados de experimento do LHC confirmam cálculos antigos de físico brasileiro sobre a interação de káons e prótons
No dia 6 de março de 2020 foi publicado na revista Physical Review Letters o resultado de um experimento de autoria da Colaboração ALICE realizado no Grande Colisor de Hádrons – o LHC (da sigla em inglês para Large Hadron Collider). A publicação sobre o experimento, que tinha como objetivo o estudo da interação entre prótons e um tipo de partículas chamadas de káons, fez uso de um modelo aprimorado por um pesquisador do IFT-UNESP em um de seus trabalhos anteriores, confirmando seus cálculos de quase uma década atrás.
A Colaboração ALICE (do inglês para A Large Ion Collider Experiment) é constituída por pesquisadores de mais de 30 países e destina-se a estudar um estado da matéria chamado plasma de quark-glúons, possível apenas em condições energéticas muito extremas. Quarks são partículas que ligam-se umas às outras através de outro tipo de partícula chamada glúon para formar partículas compostas, como prótons e nêutrons. O plasma de quark-glúons é um estado da matéria na qual prótons e nêutrons se dissolvem e liberam seus constituintes, os quarks e os glúons. Conforme esse plasma esfria e se expande, as ligações entre quarks e glúons se rearranjam e formam novamente as partículas compostas: prótons, nêutrons e outras partículas como os mésons, entre eles os káons. Por isso, embora a ALICE tenha sido criada com o objetivo de estudar o próprio plasma de quark-glúons, os seus experimentos oferecem a oportunidade perfeita para estudar a interação entre essas partículas compostas que são colididas, dissolvidas e rearranjadas no processo de criação do plasma.
O artigo publicado na Physical Review Letters relata os resultados de um experimento que aproveitou essa oportunidade para analisar a maneira como o káon interage com prótons em meio à essa sopa de partículas em colisão, uma interação ainda muito pouco entendida, considerando a existência de tão poucos dados experimentais sobre ela até então. Os autores do trabalho compararam o novo conjunto de dados com os modelos criados por outros pesquisadores e aquele que melhor se ajustou foi o modelo publicado em um artigo de 2011 pela colaboração entre o físico brasileiro Gastão Inácio Krein, pesquisador do Instituto de Física Teórica da UNESP, e seus colegas: Johann Haidenbauer, do Centro de Pesquisa Jülich, Ulf-G. Meißner, do Centro de Pesquisa Jülich e da Universidade de Bonn, e Laura Tolos, atualmente da Universidade Autônoma de Barcelona.
O Prof. Krein dedica seu trabalho à área de Cromodinâmica Quântica, que é uma teoria de interações fortes, isto é, busca entender as interações entre as partículas que formam os núcleos atômicos. O pesquisador, que por conta da pandemia de COVID-19 retirou-se de São Paulo para continuar seu trabalho remotamente de uma cidade pequena em meio à Serra da Mantiqueira, concedeu entrevista ao ICTP-SAIFR por chamada de voz. Na conversa explica que em seu trabalho de 2011, ele e seus colaboradores não tinham por objetivo desenvolver um modelo para a interação entre prótons e káons, mas sim entre prótons e outro tipo de partícula: o méson-D. Para isso, trabalharam na melhoria de um modelo pré-existente da interação com káons, o chamado modelo de Jülich, e então desenvolveram o modelo para mésons-D de maneira análoga.
Quando perguntado sobre o que tornava possível o desenvolvimento desses dois modelos de maneira análoga, o Prof. Krein diz: “O que muda [de um méson-D para um káon] é o conteúdo de quarks. Enquanto o méson-D tem um quark charme, o káon tem um quark estranho”, explica. Os nomes que o Prof. Krein usa ao se referir aos quarks vêm do Modelo Padrão da Física de Partículas, que é a teoria responsável por descrever as partículas fundamentais que formam a matéria, bem como as forças que regem as interações entre elas. Segundo o Modelo Padrão, existem seis tipos de quarks que diferem entre si pela quantidade de massa e por um tipo de carga que possuem, que os físicos chamam de sabor (flavor, em inglês): up (acima), down (abaixo), charm (charme), strange (estranho), top (topo) e bottom (base). Prótons são formados por dois quarks up e um quark down, enquanto ambos káons e mésons-D são formados por dois quarks (mais especificamente um quark e um antiquark): no caso do méson-D, um dos quarks sempre é um quark charm, enquanto no caso de um káon um dos quarks sempre é um quark strange.
“Estávamos completamente no escuro em relação à interação do méson-D. Agora, como o méson-D só difere do káon porque troca o [quark] estranho pelo charme, pensamos o seguinte: ‘essa interação entre káons e prótons já tem dados experimentais.’ Então retomamos a interação com káons. Tinha certas predições que não haviam sido feitas ainda, então nós as fizemos. E agora a Colaboração ALICE mediu essa interação e comparou com os modelos que existem na literatura – e o nosso passou bem no meio dos dados experimentais! Ficamos muito felizes quando vimos isso porque é raro acertar na mosca assim.” Embora o modelo atualizado pelo Prof. Krein e seus colaboradores não fosse o produto principal de seu trabalho na época, mostrou-se indispensável para o avanço científico em um experimento realizado quase uma década depois. “Agora estamos esperando que algum dia alguém meça a interação do méson-D com o próton também.”
Existe uma série de dificuldades técnicas envolvidas no processo para realizar medidas de alta precisão como as que permitiram a confirmação desse modelo. Para se medir a probabilidade de um káon interagir com um próton, primeiro é preciso criar um káon a partir da colisão entre dois prótons, por exemplo, e então fazer esse káon colidir com um outro próton. “[Dentro de um acelerador] você pode construir um feixe de prótons. Você tem prótons em abundância [na natureza], ele não decai e vive por muito tempo. Agora, káons não. Eles vivem por muito pouco tempo, decaem muito rápido. São todos experimentos indiretos.” O tempo de vida médio de um káon é de 0,00000001 segundos. “Esse é o grande desafio: você ter toda essa eletrônica, essa criogenia e esses aceleradores para medir isso.”
Todo o investimento técnico direcionado aos estudos dessas interações entre partículas não apenas contribui para complementar o nosso conhecimento do Modelo Padrão de física de Partículas – através do entendimento de como as partículas do núcleo atômico se ligam e interagem entre si – mas também produz diversos subprodutos de utilidade para outras áreas da ciência, como é o caso para a astrofísica: estudos como esses possuem um papel a desempenhar em pesquisas sobre estrelas de nêutrons, objetos astronômicos tão densos que estima-se que seu interior seja um ambiente propício para a ocorrência natural do plasma de quark-glúons e de partículas como káons.
O trabalho realizado pelo Prof. Krein e seus colaboradores, intitulado “DN interaction from meson exchange” publicado em 2011 no The European Physical Journal é em si próprio um exemplo de pesquisa que cria subprodutos intelectuais ou tecnológicos – como é, em geral, o costume da ciência. “Junto com isso tem todo um desenvolvimento tecnológico que tem ramificações para outras áreas, principalmente para a medicina, agricultura e ciências materiais. Essa é a grande coisa que passa despercebida com esses grandes projetos.”, conta o cientista.
Assim como o Prof. Krein, obrigado a lecionar suas aulas remotamente e a continuar seu trabalho como pesquisador longe do Instituto de Física Teórica da UNESP por conta da pandemia, o CERN, que é a Organização Européia para Pesquisa Nuclear que abriga o LHC e os pesquisadores da Colaboração ALICE, entre outros grupos, também encontra-se operando em modo remoto. Desde o dia 20 de março, atividades presenciais foram reduzidas apenas àquelas essenciais para a segurança e cuidado do local e dos equipamentos. “Eu estou aqui escondido e meus alunos na casa deles. Então tem um impacto direto no desenvolvimento do trabalho.”, diz o professor. “Apesar de estarmos nos falando todos os dias, não é a mesma coisa (…) No meu caso, em particular, eu estou sentindo isso agora, e meus alunos também estão sentindo. [Para eles] é a dissertação de mestrado, a tese de doutorado: esse é o primeiro impacto. Aí tem o impacto maior, que é o impacto nos laboratórios (…) Do ponto de vista do pessoal que opera o CERN, eles também estão sendo prejudicados.” Apesar disso, o professor preserva o otimismo de que a ciência levantará mais forte após essa crise. “Talvez a pessoa comum veja o quanto a ciência é importante (…) Quem é que faz a vacina? É um trabalho científico: são os médicos, os biólogos, os químicos. É a ciência que vai trazer essa vacina. Então chama a atenção do público que não pensa muito sobre ciência no seu dia a dia ou não enxerga a importância desse trabalho.”
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Quando o todo é (muito) mais que a soma das partes
O que a evolução de espécies, as rotas de transporte de mercadorias e a eleição democrática de representantes têm em comum? Do ponto de vista da física (e da matemática), tudo!
O último Papos de Física de 2019 aconteceu no dia 7 de novembro e, para fechar o ano, abordamos uma temática inusitada: Sistemas Complexos e o olhar da Física. Sistemas complexos formam uma área de estudo relativamente nova, naturalmente interdisciplinar, que tem reunido físicos, matemáticos, biólogos, sociólogos e até mesmo economistas, para resolver questões em comum. O professor Daniel Stariolo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi ao Tubaína Bar falar um pouco sobre o assunto e a perspectiva da física dentro desta área.
Stariolo começou a apresentação ilustrando a natureza interdisciplinar dos sistemas complexos e sua ocorrência nas mais diversas áreas de ciências e fora dela, desde os ecossistemas do planeta, planejamento de transporte e estradas, organizações sociais, evolução… O ponto em comum entre todos eles é o fato de funcionarem em redes e serem, de alguma forma, internamente conectados entre si. Os sistemas complexos podem ser naturais, que evoluíram para serem da forma como são hoje (como os ecossistemas, os organismos, o clima) ou podem ser artificiais, criados pelo homem para funcionarem do modo que conhecemos atualmente (a economia, as redes de distribuição de energia, o sistema de transporte e as redes sociais).
Alguns elementos são essenciais e caracterizam os sistemas complexos. Os principais são a existência de muitos agentes, a conectividade (relação entre os agentes) e a existência de vínculos conflitantes (ou seja, relações competitivas). Porém, não basta que esses elementos existam. Algumas propriedades do sistema surgem como consequência das características individuais dos agentes: são as chamadas propriedades emergentes.
As interações entre as partes de um sistema complexo criam padrões complexos de funcionamento coletivo. Em outras palavras, propriedades emergentes são criadas por conta da interação entre os agentes do sistemas, mas não estão presentes individualmente em cada uma das partes. Por exemplo, a interação entre os neurônios no seu cérebro permitem que você leia e entenda esse texto. Porém, um único neurônio não seria capaz de realizar a mesma atividade. Uma pessoa levantar e abaixar os braços não implica em nada; porém milhares de pessoas fazendo isso (organizadamente) nas arquibancadas de um estádio cria uma “ola”.
Dentre as inúmeras propriedades emergentes de um sistema complexo, Stariolo destacou auto organização, múltiplas escalas e complexidade.
A auto organização é inerente ao sistema e é o conjunto de regras internas que faz ele funcionar. Essa rede de relações e regras gera um fluxo de informações entre os indivíduos do sistema e, em geral, é bastante complexa para entender, e, principalmente, modelar. Quando inserido em um sistema, o indivíduo fica sujeito a essas leis de funcionamento. Por exemplo, quando começamos num trabalho novo, temos que entender (e nos adequar) a dinâmica do ambiente e suas regras, sejam elas de comportamento ou vestimenta; quando viajamos a países estrangeiros, devemos atender às leis daquele lugar e estamos sujeitos à sua constituição (via de regra… Em geral, Direito é bem mais complexo do que isso!).
As múltiplas escalas também são muito presentes nos sistemas complexos. Os próprios sistemas em geral são compostos de subsistemas, mas podem interagir com outros sistemas maiores, gerando redes de relação em escalas diferentes. Embora cada escala tenha suas regras próprias, elas se relacionam umas com as outras e também podem interferir umas nas outras.
Para entender as escalas diferentes, imagine seu corpo. Ele é formado por órgãos – pulmão, coração, rins, etc. Alguns órgãos atuam juntos e formam sistemas – respiratório, digestório, cardiovascular – e todos eles juntos formam você, que é também um sistema complexo. Se diminuirmos a escala, cada órgão é formado por tecidos diferentes – muscular, nervoso, epitelial – e cada tecido é formado por tipos específicos de célula. Ou seja, a medida que aumentamos ou diminuímos a escala, observam-se padrões e a ocorrência de sistemas complexos, com organização e regras próprios, mas que interferem uns nos outros.
O conceito de Complexidade é estudado e utilizado em diversas áreas de conhecimento, em ciências humanas, da vida e exatas, e a própria definição é controversa. No Papos de Física, Stariolo definiu a complexidade dos sistemas complexos pela possibilidade de existirem múltiplos equilíbrios possíveis para o sistema em questão. E usou a evolução de espécies para ilustrar isso.
A evolução a partir da seleção natural envolve inúmeros indivíduos (são 8,7 milhões de formas de vida hoje, sem considerar as já extintas!), explora as relações entre eles (sejam harmônicas ou desarmônicas, onde nenhuma ou alguma das partes sai prejudicada) e certamente apresenta vínculos conflitantes (sobrevivência do “mais apto”). Mas não só isso, as propriedades emergentes, citadas por Stariolo, também estão presentes: a evolução cria e modifica seus próprios padrões não-lineares e portanto é auto organizada; ela ocorre em múltiplas escalas, sejam elas temporais ou espaciais; e apresentam grande complexidade, ou seja existem muitos equilíbrios (ou espécies) possíveis – é bem provável que outras combinações de espécies estariam presentes no mundo hoje, caso alguma coisa tivesse acontecido diferente no passado. Entender em detalhe quais as relações e as regras da evolução têm sido o desafio dos biólogos (e físicos!) nos últimos anos.
O problema do caixeiro viajante
Um dos exemplos clássicos que o professor trouxe foi o conhecido “Problema do Caixeiro Viajante”. O problema é, conceitualmente, simples: qual a menor rota possível para o caixeiro passar (somente uma vez) por todas as cidades de um determinado grupo de cidades e voltar para o ponto inicial.
A princípio, pode parecer uma pergunta boba ou sem sentido, mas, na verdade, soluções desse problema têm aplicações diretas e indiretas em diversas áreas, desde planejamento e logística no transporte de mercadorias, até produção de microchips, sequenciamento de DNA e astronomia.
A origem do problema é relativamente incerta: existem registros de que esse problema tenha sido proposto no século 19, mas foi considerado matematicamente apenas na década de 30. Já nessa época, Karl Menger, um dos matemáticos que teria estudado o problema, concluiu a necessidade de um algoritmo potente para resolvê-lo e postulou que a solução “óbvia”, que comumente vem primeiro à mente, geralmente não é a resposta certa. Ele se referia a regra “do ponto mais próximo” em que, partindo de uma cidade, a rota deveria seguir sempre para a cidade seguinte mais próxima. Embora essa solução pareça razoável, nem sempre a soma total dos deslocamentos será a menor possível – e portanto, não responde ao problema original.
Stariolo mostrou um vídeo durante sua apresentação, e vamos fazer o mesmo aqui. Basicamente, o vídeo apresenta quatro respostas usando, cada um, uma abordagem diferente, para o problema: qual a menor rota possível para ligar as 200 cidades do vídeo.
O primeiro método é selecionar aleatoriamente as cidades até que todas tenham sido visitadas. Ou seja, é “deixar a vida te levar”. Essa abordagem que pode funcionar muito bem quando você está viajando a lazer e resultou no percurso de 327452.4 km percorrido entre as cidades.
O segundo método é o de escolher sempre a cidade mais próxima – a solução “óbvia” que vêm à mente, como falado nos parágrafos anteriores. Provavelmente seria a solução que um turista um pouco mais preparado teria escolhido. No caso do vídeo, a distância total percorrida seria 36226.2km.
A terceira abordagem utiliza o método inicial, criando uma rede aleatória, mas o otimiza, sempre selecionando 2 pontas para trocar. A não ser que seu problema a resolver seja trivial, escolher quais pontas trocar é complicado. Assim, a solução é que o algoritmo faça trocas aleatórias até que encontre a menor rota. O problema dessa abordagem é que, por conta do caminho inicial escolhido, o algoritmo empaca numa solução que não é a melhor possível – e pode ser um “mínimo local”, que não necessariamente é o mínimo global do seu sistema. Nesse caso, o viajante teria percorrido 31887.0 km
Como melhorar isso? Utilizando uma técnica probabilística chamada recozimento simulado (simulated annealing), que tem suas origens na termodinâmica.
Para resolver o problema do caixeiro viajante, usar o recozimento simulado permite aceitar probabilisticamente soluções ruins no início da busca. Quanto tempo a busca pelo menor caminho vai durar é medida de acordo com uma temperatura hipotética para o sistema. No início da busca, a temperatura é alta e a chance de aceitar resultados ruins é maior. Com a diminuição da temperatura, também diminui a probabilidade de que a resposta obtida não seja a ideal. No caso do vídeo, o caminho ideal entre as 200 cidades é encontrado quanto a “temperatura do sistema” é 0.4, encontrando uma solução de 30944.3 km.
Recapitulando… a abordagem completamente aleatória percorreria 327 mil quilômetros; ligando sempre o ponto mais próximo, a segunda, 36,2 mil km; a terceira, usando otimização, 31,9 mil km; e, por fim, a quarta, que usa otimização e recozimento simulado, 31,0 mil km.
Claramente, o método do turista “deixa a vida me levar” é o mais longo de todos – e às vezes esse pode até ser o objetivo do turista. Mas quando falamos do transporte de cargas e da logística de mercadorias, é interessante para as empresas gastar o mínimo possível, ou seja, tomar a menor rota possível.
A diferença mais expressiva é entre o ‘viajar sempre para a cidade mais próxima’ e os métodos probabilísticos mais robustos. Considere um caminhão viajando constantemente a 80km/h e cujo desempenho seja 29 litros/100km. A alternativa 2, indo sempre à cidade mais próxima, gastaria 10500 litros ao longo de 453 horas (ou seja, 18.9 dias corridos). Usando a melhor das rotas calculadas, seriam utilizados 1530 litros de combustível a menos, e 2,8 dias seriam economizados na conta do motorista. Se você imaginar grandes companhias com milhares de caminhoneiros transportando mercadoria todos os dias, isso faz uma baita diferença!
Método | Distância (km) | Combustível* | Tempo de percurso** | |
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327452,4 | 94961 | 4093 h | 170,5 d |
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36226,2 | 10506 | 453 h | 18,9 d |
|
31887,0 | 9247 | 399 h | 16,6 d |
|
30944,3 | 8974 | 387 h | 16,1 d |
(*) em litros, considerando consumo de 29 L /100km (**) em horas e dias, considerando velocidade constante de 80km/h |
Mas o que física tem a ver com isso tudo?
Primeiramente, princípios de física são utilizados para entender como funciona a natureza. Sistemas complexos ocorrem nas mais diversas escalas e nos mais diversos locais na natureza, então é esperado que a física poderia ser usada para estudá-los. Além disso, a física já tem um conceito que está relacionado o grau de desordem de um sistema – a entropia – e uma área de estudo que se propõe a estudá-la: a termodinâmica.
A termodinâmica pode ser estudada tanto pela mecânica clássica, com as leis de Newton, quanto pela mecânica quântica, com todas as estranhezas intrínsecas ao mundo do muito pequeno. Mas, quando tratamos de uma quantidade muito grande de objetos a serem estudados – moléculas, átomos, elétrons -, é necessário usar a física estatística. A ideia é aliar probabilidade e estatística para caracterizar o comportamento médio (ou probabilístico) de sistemas microscópicos onde existam muitos elementos interagindo. Stariolo ainda comenta que a física estatística é, grosso modo, a termodinâmica na escala microscópica.
Vale lembrar que nem todo sistema estudado com física estatística é um sistema complexo, por conta das outras características intrínsecas deles, como já mencionado neste texto. Um sistema complicado de entender não necessariamente é um sistema complexo! Mesmo assim, a física estatística é uma ferramenta para o estudo dos sistemas complexos, e rompe as barreiras do mundo micro – com ela é possível estudar desde os átomos e moléculas, até as redes sociais e a economia mundial.
O Papos de Física é um evento mensal de divulgação científica promovido pelo ICTP-SAIFR no Tubaína Bar (R. Haddock Lobo, 74). Todo mês, levamos pesquisadores para conversar com o público leigo sobre assuntos intrigantes da física, em palestras descontraídas e informais. Fique ligado para os eventos de 2020 no nosso instagram e na página!
Para saber mais sobre sistemas complexos e a física por trás deles:
SAIFR Divulga! – A Mecânica Estatística só se aplica a fenômenos físicos?
http://www.cbpf.br/~desafios/media/livro/Sistema_complexos.pdf
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Qual a importância da Diversidade em STEM?
Demanda por diversidade é cada vez maior no meio científico. Em outubro, o ICTP-SAIFR sediou dois workshops internacionais para discutir essa questão.
A escolha por uma carreira acadêmica na área de STEM (sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática) é individual. Ela é influenciada por vários aspectos sociais, econômicos e culturais, que vão além do acesso à educação de cada um, e não são diretamente relacionadas ao gênero de cada um. Porém, historicamente, essas profissões são ocupadas majoritariamente por homens. O crescente ingresso de mulheres nessas áreas nos últimos anos, no Brasil e no mundo, tem levantado o debate acerca da diversidade nas áreas de Ciência e Tecnologia.
Em outubro, o ICTP-SAIFR, centro de pesquisa associado ao IFT-UNESP, sediou dois eventos voltados para a discussão sobre a diversidade na Ciência e Tecnologia: o Workshop sobre Habilidades para Jovens Cientistas e o Workshop Aumentando a Diversidade em STEM. Realizados de forma consecutiva, os eventos se fundiram em um só e reuniram dezenas de participantes, em sua maioria mulheres, de toda a América Latina para uma semana de discussões e debates.
Os primeiros dias de evento contaram, principalmente, com palestras de pesquisadoras bem estabelecidas, compartilhando suas trajetórias, experiências pessoais e dificuldades enfrentadas. Relatos inspiradores de pesquisadoras como Marcia Barbosa (UFRGS), Zélia Ludwig (UFJF) e Katemari Rosa (UFBA) trouxeram reflexões e dados sobre a presença feminina no ambiente acadêmico, sua importância, e críticas à situação atual. A professora Katemari Rosa (UFBA) falou sobre sua pesquisa em ensino de física e também abordou a falta de representatividade de outras minorias e grupos marginalizados na ciência, como as populações negra, indígena e LGBTQ+.
Num ambiente acolhedor, muitas vezes o público se identificou com as histórias contadas e momentos de troca de relatos e vivências ocorreram ao final de cada apresentação. Também nos dois primeiros dias de evento, foi exibido o curta metragem “Women in Science”, produzido por uma estudante de Bacharelado em Física na USP. Este filme traz cenas baseadas em relatos reais de “pequenas violências” sofridas no ambiente acadêmico. Para saber mais sobre o filme e sua produção, veja essa matéria.
O workshop também contou com uma mesa redonda sobre Etnicidade, da qual participaram as professoras Katemari Rosa (UFBA), Zelia Ludwig (UFJF), Lilia Meza Montes (BUAP, México) e os professores Henrique Cunha Jr. (UFC) e Antônio Carlos Fontes dos Santos (UFRJ). Lilia Montes trouxe dados sobre as políticas públicas do governo do México para aumentar a quantidade de indígenas na Academia e falou sobre a importância delas. O professor Henrique Cunha apresentou cientistas negros pioneiros, em geral desconhecidos pelas pessoas, segundo ele, justamente pela invisibilidade de negros na Academia. São eles: Juliano Moreira, médico e psiquiatra; Theodoro Sampaio, engenheiro e urbanista; Manuel Quirino, pioneiro em estudos antropológicos no país; e Virginia Bicudo, psicanalista, socióloga e uma das precursoras dos estudos de Sociologia Negra no Brasil.
Zélia Ludwig e Antonio Santos questionaram os estereótipos da figura do cientista e reforçaram a necessidade de incentivar jovens negros e mulheres a entrar nas áreas de STEM. Por fim, a professora Katemari Rosa contou sobre o projeto que vem desenvolvendo – o “Contando nossa História”. Esse projeto visa criar uma base de dados de cientistas negros no Brasil, hoje e no registro histórico: “um dos objetivos é resgatar uma identificação da população negra brasileira com as ciências e nossa produção intelectual”, comenta a professora. Ela também busca, a partir das narrativas orais da vida de cientistas, produzir materiais didáticos e plataformas online, que sejam amplamente utilizadas pelo público dentro e fora das salas de aula.
Ao longo da semana de eventos, foram discutidas diversas estratégias para combater e modificar o desequilíbrio de diversidade que a Academia apresenta. Dentre as principais abordagens apresentadas, reunimos abaixo três grandes categorias: identificar, incentivar e divulgar.
Identificar
Avaliar a presença de mulheres e minorias nas áreas de STEM não se resume a experiências pessoais dos envolvidos, embora falar sobre o tema seja importante para essas pessoas. Os participantes do workshop, por exemplo, destacaram a troca de experiências, em especial entre cientistas mais experientes e jovens pesquisadoras; a noção de pertencimento e construção de identidade como pesquisador e a criação de redes de apoio pessoal e colaboração científica são vantagens desse tipo de evento.
Antes de discutir medidas concretas, o primeiro passo fundamental é levantar dados: mapear, quantitativamente, a distribuição de mulheres e outras minorias nas mais diversas áreas de STEM. Por isso, várias das palestras também apresentaram dados estatísticos sobre a presença feminina nos ambientes acadêmicos, desde a graduação até bolsas de incentivo a pesquisadores e premiações. Independentemente da área, país ou minoria analisada, à medida que se avança na carreira acadêmica, o número de mulheres, negros, índios e lgbtq+ diminuem drasticamente – um fenômeno conhecido como “teto de vidro” (por conta dele, a ascensão na carreira é mais difícil à medida que esta avança, em especial para as minorias reportadas).
No workshop, foram apresentados os dados preliminares da pesquisa global de cientistas, promovida pelo Projeto Global de Disparidade de Gênero (em inglês, Global Gender Gap in Science Project). Realizada em 2018, esta pesquisa coletou mais de 34 mil respostas de todo o mundo, e buscou caracterizar a disparidade de gênero em STEM. Na América Latina, cerca de 4000 pessoas responderam ao questionário. O projeto ainda está processando os dados e disponibilizará no site os resultados finais. Durante o workshop no ICTP, foram apresentados os resultados preliminares.
Na pesquisa, 53% dos respondentes se identificaram como mulheres, e, embora sugira proporção igualitária entre homens e mulheres na STEM na América Latina, é necessário manter em mente que esta pesquisa foi obtida a partir do preenchimento voluntário de formulários online e, portanto, não necessariamente reflete a proporção de gênero que efetivamente ocorre na Academia. De maneira geral, os dados mostram que mulheres são menos propensas a realizar pesquisa fora dos países de origem, ocupar posições de chefia e em comitês, tanto em suas instituições ou em agências de fomento.
Os dados mais contrastantes sobre as experiências de homens e mulheres na Academia dizem respeito à discriminação, assédio e impacto da maternidade/paternidade em suas vidas. Ao serem questionados sobre os motivos pelos quais sofreram discriminação ao longo da carreira, 49% das mulheres indicam gênero, contra apenas 2% dos homens pelo mesmo motivo. A segunda maior fonte de discriminação reportada é a idade. Esta é a maior queixa dos homens, com indicação de 12% dos respondentes; entre as mulheres, 23% se sentiu prejudicada por conta da idade.
Interrupções significativas durante o doutorado ocorrem em taxas semelhantes entre homens (13%) e mulheres (20%), porém, os motivos são muito diferentes. Cerca de 40% das mulheres relatam a maternidade como principal motivo da interrupção; entre os homens, o mesmo motivo é o 8° da lista, ocorrendo em apenas 9% de casos. O principal motivo de interrupção dos estudos para os respondentes do sexo masculino é impedimento financeiro. Quanto ao assédio sexual, aproximadamente ⅓ de homens e mulheres reportaram “ouvir falar” de casos em seus institutos. Entretanto, quando se trata de experiências pessoais, 24% das mulheres relatam terem vivido essas situações, enquanto apenas 6% dos homens se queixam pelo mesmo motivo.
Como é a situação de gênero no IFT-UNESP e no ICTP-SAIFR?
Um rápido levantamento do perfil de estudantes, professores, pesquisadores e funcionários que fazem parte do IFT-UNESP e/ou do ICTP-SAIFR mostra que a disparidade de gênero existe. O IFT é um instituto de pós-graduação e pesquisa, assim como o ICTP-SAIFR. Dessa forma, a reduzida presença de mulheres é, provavelmente, reflexo também da já limitada presença feminina na graduação em física. Veja o gráfico abaixo, que resume a proporção entre homens e mulheres dos institutos, com dados levantados em outubro de 2019.
Nathan Berkovits, diretor do ICTP-SAIFR, comenta que o ingresso no curso de mestrado no IFT-UNESP é parcialmente baseado nos resultados de um exame oferecido anualmente pelo ICTP-SAIFR para os melhores alunos de graduação e que, desde 2005, somente uma mulher ficou entre os 5 melhores colocados nesse exame. O diretor explica ainda que gostaria de aumentar a diversidade do corpo docente do ICTP-SAIFR mas, por conta do reduzido número de mulheres na Física Teórica, a competição internacional pelas melhores pesquisadoras é “feroz”: “nos últimos 3 concursos para professores permanentes no IFT, quatro candidatas muito fortes desistiram porque conseguiram posições nos EUA e na Europa” comenta.
O ICTP-SAIFR também busca incentivar mais meninas a escolherem a Física como profissão. O centro promove anualmente o Aventuras em Física Teórica, uma série de minicursos para estudantes de ensino médio, cujo objetivo é introduzir os alunos a assuntos de Física Teórica e despertar o interesse por essa área. Para participar, os estudantes passam por uma seleção e o público convocado é sempre composto pelo mesmo número de meninas e meninos. Apesar de serem convocados em proporção igual, de maneira geral, mais meninos comparecem às aulas (cerca de 65% contra 35% de meninas).
Incentivar
Diversas palestras focaram na importância de incentivar mulheres e minorias a entrar e permanecer nas áreas de STEM. Esse incentivo pode se dar de várias formas, dependendo do público alvo, e incluem bolsas de estudos, ações afirmativas, e premiações por alto desempenho.
O México foi um dos exemplos citados no workshop, como um país que conta com bolsas de estudos voltadas para minorias. Lá, existem alguns programas de incentivo à educação da população indígena, que possui índices de analfabetismo e falta de acesso à educação muito superiores à média do país, entre eles projetos específicos para meninas (veja aqui os projetos). No país, também existem diversas outras bolsas específicas para mulheres, incluindo variedades para mães solo inseridas no ensino superior, com excelente histórico acadêmico; bolsas de pós graduação para mulheres indígenas; e bolsas de pós doutorado em parceria com o Canadá. Essas bolsas são ações afirmativas importantes, mas ainda não conseguem suprir o problema de equidade de gênero na Academia. Isso sugere que mais ações devem ser tomadas, incluindo a implementação de políticas públicas, conforme discutido durante o workshop.
Premiações para pesquisadoras de destaque também são uma forma de incentivar as mulheres nas áreas de STEM, além disso, prêmios dados a cientistas em início de carreira também são frequentes. Durante o workshop, a física Marcia Barbosa, que recebeu o L’Oréal-UNESCO Awards for Women in Science em 2013, ressaltou a importância de dar o reconhecimento às conquistas das mulheres através destes prêmios. Outras premiações para mulheres em áreas de STEM existem, uma lista destas pode ser encontrada na wikipedia.
Outra forma de incentivar mais mulheres a seguirem carreira nas áreas de STEM é dar suporte para meninas em idade de formação. “É preciso incentivar as meninas desde cedo” pode ter sido uma das frases mais faladas durante a semana de evento. Assim, a última forma de incentivo faz uma ponte com o terceiro tipo de iniciativa: divulgar.
Divulgar
Entrar no mundo da STEM depende de diversos fatores sócio-econômicos e culturais, que influenciam a escolha dos indivíduos, mas aparentemente favorecem o ingresso de homens. Por isso, a necessidade de incentivar mais meninas e mulheres a entrarem nesse mundo é um consenso entre todos os participantes do Workshop de Diversidade: é necessário adotar medidas que atinjam tanto as meninas que já se interessavam por ciência, quanto aquelas que “ainda não sabem que se interessam”. Assim, a divulgação científica se torna ferramenta protagonista na tarefa de trazer mais diversidade para as áreas de STEM.
Diversas iniciativas de divulgação científica têm surgido nos últimos anos, em geral, motivadas pela democratização e valorização do conhecimento científico. Além de suprir a curiosidade daqueles que já se interessam por ciência e tecnologia, a divulgação científica tem se tornado, cada vez mais, uma ferramenta de “recrutamento”, principalmente de crianças e adolescentes. Alguns projetos apresentados durante o Workshop, como o “Tem menina no circuito” e o “Meninas na Física”, organizadas por alunas e professoras do Instituto de Física da UFRJ, são voltados para meninas em idade de formação escolar. Estes e outros projetos de divulgação procuram não somente ensinar conteúdos de ciência de forma fácil e acessível, mas também mostrar que existem mulheres cientistas no país: “Representatividade importa”, como relataram diversas palestrantes ao contar sobre seus projetos de divulgação.
Fazer divulgação científica para o público geral também tem impactos positivos para os pesquisadores. Germana Barata, professora e pesquisadora do Labjor – Unicamp (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo), mostrou que, ao fazer publicações nas redes sociais sobre artigos recém-publicados, o número de acessos aos mesmos quase dobra, em comparação aos meses em que não há essa divulgação. Segundo ela, isso ocorre mesmo que os textos sejam em linguagem acessível, ou seja, divulgar para público leigo acabou atraindo mais pessoas de público especializado.
O último dia de workshop foi destinado às apresentações dos participantes, onde, mais uma vez, a divulgação científica mostrou seu potencial. A apresentação de Milene Alves-Eigenheer, com páginas de redes sociais de várias iniciativas de sucesso está disponível no site do evento. Por fim, como “tarefa para casa”, o público foi desafiado a utilizar mais suas redes sociais pessoais para falar de suas pesquisas e seu dia a dia como cientistas, e ajudar na quebra dos estereótipos da Academia.
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Experiência imersiva com óculos de realidade virtual mostra o dia a dia das estudantes de física
Projeto de estudante de física da USP propõe mostrar, de forma respeitosa e ao mesmo tempo combativa, a realidade da vivência de alunas de cursos majoritariamente frequentados por homens.
Empatia é um conceito cujo significado é relativamente bem conhecido – a capacidade de se identificar com outra pessoa, de se colocar no lugar dela. Porém, praticar a empatia é uma tarefa muito mais complicada, especialmente quando as pessoas envolvidas têm realidades muito contrastantes. O projeto da estudante Dindara Galvão, da USP, consistiu na produção de um curta metragem sobre as dificuldades encontradas na carreira acadêmica por conta do gênero. Ela utiliza óculos de realidade virtual para oferecer uma experiência imersiva, colocando o espectador no lugar das protagonistas, experimentando na pele situações comumente vividas por graduandas das áreas de exatas.
A iniciativa já existia antes, como projeto da pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP, mas com um formato completamente diferente: a ideia era produzir uma peça de teatro que contava a trajetória de uma pesquisadora, através de relatos reais. Quando Dindara assumiu, adaptou o foco para algo que lhe era mais familiar: sua vivência como aluna do bacharelado em física “como eu vivi muitas coisas na graduação, eu achei que seria importante trazer essa visão”. Para potencializar o alcance e distribuição do trabalho, a estudante optou por produzir um curta metragem e seu orientador, o professor Caetano Miranda (IFUSP), propôs utilizar uma câmera 360° e tornar essa experiência imersiva.
O grupo organizou questionários online para recolher relatos de mulheres das graduações de diversos institutos de ciências exatas da Universidade de São Paulo (Instituto de Física (IFUSP), Matemática (IME-USP), Química (IQ-USP) e Astronomia Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG-USP). Os roteiros das cenas do curta metragem foram escritos a partir das situações mais recorrentes nos relatos. O curta tem 10 cenas que, embora independentes, são organizadas numa sequência lógica. Ele ilustra a carreira acadêmica desde o início, logo após a aprovação no vestibular, até o reconhecimento como pesquisadora, encenada numa “corrida pelo Nobel”. Cada cena representa situações negativas vivenciadas pelas mulheres no ambiente acadêmico, incluindo difamação, humilhação, invisibilização por colegas e professores, assédio, a questão da maternidade, entre outros.
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Bate-papo sobre um dos temas mais polêmicos da atualidade: o Aquecimento Global
No dia 03 de outubro aconteceu mais uma edição do Papos de Física, evento mensal de divulgação científica promovido pelo ICTP-SAIFR, centro de pesquisa associado ao IFT-UNESP. Nesta edição o público pôde conversar com a profa. Dra. Ilana Wainer, professora do Instituto Oceanográfico da USP (IO-USP), que discutiu os Efeitos Climáticos do Oceano.
Algumas semanas antes da realização do Papos de Física, o IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas) divulgou o mais recente Relatório Especial sobre o Oceano e a Criosfera (regiões da superfície terrestre cobertas permanentemente por gelo e neve). Aproveitando os dados divulgados neste relatório, a professora apresentou as principais evidências que comprovam o aquecimento global e quais as perspectivas (otimistas ou não) sobre o futuro do planeta.
Antes de mais nada, a professora esclareceu a diferença entre tempo e clima. Tempo compreende as condições e mudanças meteorológicas que estão ocorrendo no agora. Clima, por outro lado, compreende padrões médios de variação das condições atmosféricas ao longo de um período prolongado de tempo. Assim, falar que está fazendo sol é falar sobre o tempo, mas falar que normalmente em janeiro faz calor e chove, é falar sobre clima. Quando falam de aquecimento global e mudanças climáticas, os cientistas olham para esses padrões de variação ao longo do tempo, em escalas globais.
Mas antes de entrar no polêmico aquecimento global, vamos entender um pouco sobre a influência dos oceanos no clima.
O planeta Terra, como um todo, é um sistema complexo onde diversos agentes se relacionam. Isso se aplica também ao clima, que é influenciado e atua sobre a biosfera (que comporta os ecossistemas do planeta), a litosfera (rochas e estrutura interna terrestre), a hidrosfera (água em seus diferentes ambientes) e, obviamente, a atmosfera (camada de gases que envolve o planeta). As interações entre essas diferentes “esferas” ocorrem em escalas espaciais e temporais distintas, mas todas exercem algum impacto no controle do clima global. No Papos de Física de outubro, Ilana focou nas interações entre atmosfera e hidrosfera (em especial, os oceanos) e seu efeito sobre o clima.
Ilana explicou que os oceanos são como o ar condicionado da Terra e têm um papel fundamental na redistribuição de calor no planeta. A água retém mais calor que a atmosfera e, por conta das correntes oceânicas, o calor é distribuído. As correntes são divididas entre correntes superficiais, mais quentes, e correntes de fundo oceânico, mais frias. Elas são influenciadas por diversos fatores, incluindo ventos, marés, densidade da água e o movimento de rotação da Terra. Até a topografia do fundo oceânico e das costas influencia na velocidade das correntes.
Mesmo que as marés exerçam influência nas regiões próximas às costas, a principal força motriz das correntes superficiais é a atmosfera.
A ação dos ventos movimenta mais ou menos 10% do volume do oceano, atuando diretamente nas camadas mais superiores de água. Estas, por sua vez, influenciam a movimentação das camadas logo abaixo, e assim por diante. Dessa forma, os ventos podem influenciar o movimento de água até a profundidade de 400m.
Mas os oceanos são muito mais profundos do que 400m. Se os ventos só conseguem influenciar até essa profundidade, deve haver outro mecanismo responsável pela movimentação das correntes profundas, certo? Exato. As correntes profundas são controladas, principalmente, pela densidade da água do mar.
Ao se movimentar em direção aos pólos, a temperatura da água diminui. Nessas regiões, a salinidade é maior, ou seja, a concentração de sal dissolvido aumenta – isso ocorre porque parte da água é aprisionada em cristais de gelo, deixando as moléculas de sal para trás, concentradas na água líquida. A água mais fria e “salgada” é mais densa que a água que chega nessas regiões e afunda, criando correntes de movimentação vertical chamada circulação termoalina. A movimentação de águas profundas em direção à superfície também carrega nutrientes que sustentam a base das cadeias alimentares marinhas.
A ação conjunta das correntes oceânicas superficiais e profundas mantém o equilíbrio do clima no planeta todo. Ou pelo menos costumava manter… Apesar da complexidade do sistema controlando o clima, o equilíbrio é, na verdade, frágil, e “pequenas” perturbações podem ter consequências grandes.
Como sabemos que o planeta está aquecendo?
No IPCC centenas de cientistas de todo o mundo recolhem dados sobre o clima global para avaliar os impactos do aquecimento global. Comprova-se que o planeta está, de fato, aquecendo a partir de diversos indicadores. Vamos conhecer alguns deles?
Diminuição das geleiras
Talvez o mais conhecido e impactante indicador do aquecimento global é o derretimento das geleiras. Imagens de satélite mostram a cobertura de gelo marinho no Ártico cada vez menor nas últimas décadas.
Umidade específica do ar
A umidade específica do ar também tem aumentado no passar dos anos. Isso significa mais vapor d’água no ar. A princípio, ter mais água não parece um problema, mas, na verdade, o vapor d’água é um gás estufa poderosíssimo e contribui para o aumento da temperatura.
Calor dos oceanos
Também há registro do aumento do conteúdo de calor nos oceanos. Já existem evidências de que as temperaturas estão aumentando na superfície dos oceanos e até os primeiros 700m de profundidade. Isso afeta diretamente os frágeis ecossistemas marinhos, e também a população que depende dele para se alimentar.
Aumento do nível do mar
Diversas localidades já registram aumento do nível do mar no mundo. Isso é causado tanto pelas taxas aceleradas de derretimento das geleiras do Ártico, como também pela expansão térmica dos oceanos (por conta do aumento de temperatura). Estima-se que atualmente o nível do mar sobe 3.6 mm por ano.
Temperatura da baixa atmosfera
A atmosfera é dividida em algumas camadas, de acordo com a distância em relação ao solo. Nós habitamos a troposfera, a camada mais baixa, que compreende até 12km de altitude, e fica abaixo da camada de ozônio. Medidas sistemáticas da temperatura dessa camada mostram que ela tem esquentado nos últimos anos. Aliás, comparado à época pré-Revolução Industrial, a temperatura já subiu 1°C! Isso acontece por que os gases de efeito estufa se acumulam na atmosfera e retém o calor irradiado da superfície e elevando a temperatura.
Aliás, o que é o Efeito Estufa?
Primeiro, precisamos saber que o Efeito Estufa é natural e, na verdade, garante a vida na Terra.
Na agricultura, as estufas são utilizadas para cultivar plantas mais sensíveis, e que não sobreviveriam ao clima no exterior. Dentro de uma estufa, a radiação solar passa pelas paredes de vidro e é absorvida pelas plantas e outras estruturas dentro dela. Parte da radiação é irradiada de volta, mas fica presa conta das paredes de vidro. Dessa forma, é possível cultivar plantas independente das variações climáticas das estações do ano. De forma semelhante, o planeta Terra também está dentro de uma estufa – a nossa atmosfera.
Quando a radiação solar chega na Terra, parte dela é refletida de volta para o espaço pelas camadas mais externas da atmosfera. Uma outra pequena parcela é refletida de volta para o espaço nas grandes geleiras, por conta da cor branca dessas superfícies. O restante é absorvido pelos oceanos e massas de terra do planeta. A Terra irradia parte do calor absorvido de volta para o espaço, mas uma porcentagem acaba presa na atmosfera, por conta dos gases do efeito estufa existentes, e isso mantém o planeta aquecido. Se não fosse esse efeito, a Terra poderia ser até 33°C mais fria, o que inviabilizaria a vida por aqui (pelo menos nas formas como a conhecemos hoje).
Os gases do efeito estufa incluem vapor d’água, dióxido de carbono (conhecido como gás carbônico – CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O), ozônio e os componentes clorofluorcarbonos (CFCs). Com exceção dos CFCs, que são utilizados para refrigeração, todos esses gases são naturais e estão presentes na atmosfera terrestre, em proporções variadas. A grande questão é que o estilo de vida que levamos hoje, com grande dependência de combustíveis fósseis e emissão de gases, potencializa o efeito estufa, contribuindo para o aumento da temperatura do planeta.
E para onde vai esse calor em excesso? Por enquanto, para o oceano (uma das causas do aumento da sua temperatura). Estima-se que os oceanos sejam responsáveis por absorver cerca de 93% do calor em excesso da atmosfera. Por enquanto, eles são capazes de fazer isso, mas Ilana alertou que já estamos nos aproximando de um “ponto de inflexão”, e que talvez os oceanos não sejam capazes de absorver o calor em excesso por muito tempo. As consequências disso podem ser severas, acelerando as mudanças que já estão ocorrendo e aumentando ainda mais a temperatura.
Como as mudanças climáticas já estão afetando o planeta?
- O aquecimento do oceano é acompanhado da diminuição do pH e diminuição da quantidade de O2 dissolvido na água. O resultado é morte de parte significativa da vida marinha e alteração do equilíbrio químico dos oceanos;
- Além disso, o aquecimento do oceano prejudica a mistura entre camadas de profundidades diferentes, gerando a estagnação da água. Isso implica em menos oxigenação das camadas e menor circulação de nutrientes, também impactando a vida marinha;
- O nível do mar já aumentou em algumas partes do planeta. As mudanças variam de lugar para lugar, mas é importante lembrar que quase 2 bilhões de pessoas moram a menos de 100km da costa, e toda essa população está em perigo com variações drásticas do nível do mar;
- Chuvas, ciclones tropicais e outros eventos extremos que atingem as costas têm se intensificado;
- O aumento do nível do mar também é associado com maior incidência de inundações, enchentes, secas, erosão e danos para infra-estrutura de regiões próximas à costa, desaparecimento de ilhas oceânicas e contaminação de aquíferos;
- Cenários otimistas prevêem o aumento do nível do mar em 60cm até 2100, isso caso sejam implementadas, agora, medidas e políticas públicas comprometidas com a diminuição da emissão de gases de efeito estufa. Em cenários mais pessimistas, onde não existe controle algum, calcula-se que a elevação pode ser de até 1 metro!
Com as predições do novo relatório do IPCC, Ilana alertou que devemos cobrar posicionamento e políticas públicas dos governantes, para ajudar a conter as mudanças climáticas no mundo todo. Alguns efeitos já são irreversíveis, como apontou a pesquisadora, e é necessário agir agora para evitar que os cenários mais pessimistas se concretizem.
O Papos de Física é um evento mensal de divulgação científica promovido pelo ICTP-SAIFR, que ocorre todo início de mês no Tubaína Bar (R. Haddock Lobo, 94). Nesses eventos, físicos levam assuntos de ciência que despertam curiosidade do público para uma conversa informal e descontraída, de forma acessível a todos. A última edição do ano, aconteceu no dia 07 de novembro, com o tema “Sistemas Complexos: o Olhar da Física”. Fique atento ao blog para saber como foi o evento e nas nossas redes sociais para saber da programação de 2020!
Para saber mais sobre mudanças climáticas:
- Veritasium (em inglês, com legendas): https://www.youtube.com/watch?v=OWXoRSIxyIU
- TED-Ed (em inglês, com legendas): https://www.youtube.com/watch?v=p4pWafuvdrY
- Materiais do IPCC: https://www.ipcc.ch/2019/09/25/srocc-press-release/ | https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/3/2019/09/SROCC_SPM_HeadlineStatements.pdf
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Um papo sobre a expansão do Universo
No dia 12 de setembro ocorreu mais uma edição do Papos de Física, e dessa vez o público pôde assistir o professor Eduardo Cypriano (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas – IAG-USP) falar sobre os “Desafios da Cosmologia Observacional”. Eduardo começou a palestra fazendo um panorama geral do que se entende por Cosmologia atualmente, como ela funciona e quais os desafios futuros.
Nossos ancestrais, há milhares de anos, voltaram os olhos para o céu estrelado e tentaram dar significado para aqueles pontos brilhantes que tanto nos fascinam. Desde então, praticamente todas as civilizações das quais se têm registro, criaram mitos e histórias que, de alguma forma, explicavam os porquês do céu ser do jeito que é. Hoje, Cosmologia é a área da ciência que se ocupa em entender o Universo como um todo.
Apesar das contribuições de cientistas como Galileu, Newton e Kepler, foi com Einstein e a Teoria da Relatividade Geral que surgiu uma revolução na maneira como entendemos o Universo. A teoria, que explica a gravitação, introduziu a ideia de espaço-tempo, mostrou a existência da relação entre massa e energia, e resolveu o problema da órbita de Mercúrio: a órbita de todos os planetas se modifica um pouco ao longo do tempo, mas os cálculos feitos para a órbita de Mercúrio não batiam com as observações, até que a Relatividade Geral foi incorporada nas contas. A Relatividade Geral prevê diversos outros fenômenos que hoje estamos verificando, como as ondas gravitacionais, detectadas diretamente em 2015 (clique aqui para saber mais!), e a existência de buracos negros, comprovada pelo primeiro registro “fotográfico” de um, em abril de 2019.
Porém, como lembrou Cypriano, Einstein não estava completamente correto em alguns pontos, entre eles, o fato de considerar nosso universo finito e estático. A partir das equações de Einstein, Friedmann, um físico e matemático russo, descreveu leis que previam a expansão do Universo, considerando que ele seria homogêneo e isótropo (ou seja, igual em todas as direções). Mas foi com as contribuições de Henrietta Leavitt que, anos mais tarde, Lemaitre e Hubble comprovaram a expansão do Universo.
Henrietta Leavitt foi uma astrônoma americana, responsável pela descoberta da existência de uma relação entre o período e a luminosidade de cefeidas, um tipo de estrela. Esta constatação deu origem ao método utilizado para medir as distâncias entre astros. Com esse método, as distâncias entre a Terra e várias estrelas e galáxias começaram a ser medidas até que Lemaitre e Hubble, independentemente, observaram uma relação linear entre a distância e a velocidade com a qual as galáxias estão se movendo, e atribuíram essa relação à expansão do Universo. Assim, estes cientistas mostraram que, ao contrário do que pensava Einstein, o Universo não é finito e estático e está, na verdade, se expandindo.
Sabemos que o Universo está se expandindo. Assunto encerrado, certo? Na verdade, constatar que o Universo está expandindo levanta muitas outras questões: o universo vai expandir para sempre? A expansão ocorre sempre à mesma velocidade, ou está retardando? Ocorre um processo cíclico, no qual o Universo alterna entre expandir-se e contrair-se infinitamente? Qual o futuro do Universo?
O professor mostrou que essas questões têm relação direta com a própria geometria do Universo, e que existem três modelos possíveis: num universo fechado, o modelo que se adequa melhor aos cálculos é o de alternância de ciclos de expansão e contração; num universo aberto, com pouca massa, os cálculos prevêem que o cosmos se expandirá para sempre; e na terceira opção, onde a geometria do universo seria plana, o universo deve possuir uma densidade específica, uma “massa crítica”, e dessa forma ele está se expandindo agora, mas cada vez a taxas menores, de forma que, um dia, atingirá um tamanho máximo.
Como resolver essa questão?
Primeiramente, os astrônomos determinaram a densidade do universo. Cada um dos modelos geométricos funciona para valores específicos de densidade, e por isso essa era uma das saídas. O problema é que a densidade calculada foi um valor diferente do esperado, e, na verdade, não era exatamente equivalente aos valores de nenhum dos modelos, mas sim a um valor intermediário.
A alternativa encontrada pelos astrofísicos foi calcular as velocidades e distâncias de estrelas ainda mais distantes. A ideia seria que, para esses corpos tão distantes, já seria possível observar a desaceleração do Universo. E funcionou! Utilizando supernovas como referência, foi possível “enxergar” lugares ainda mais afastados no universo e calcular suas distâncias e velocidades com as quais galáxias distantes se deslocam. Mas… Mais uma vez, o universo pregou uma peça nos cientistas. Certos de que encontrariam a taxa de desaceleração do universo (ou seja, quanto a velocidade diminui com o tempo), os cientistas se surpreenderam ao encontrar um valor negativo.
Ou seja: o universo não está expandindo cada vez mais devagar, mas sim cada vez mais rápido!
Nesse momento, o professor Eduardo aproveitou a oportunidade para explicar um pouco sobre o Método Científico e a importância de aplicá-lo no fazer científico. Ao longo da história da ciência, repetidamente os cientistas se surpreenderam com os resultados de seus cálculos e experimentos. No fazer científico, faz parte do processo ter de repensar (e muitas vezes descartar) a hipótese original, tendo em vista os resultados das observações e experimentos. Este episódio da descoberta da expansão do Universo é um bom exemplo sobre como os pesquisadores devem se apoiar no método, e não apenas em suas intuições.
Voltando ao assunto… Porque o universo está se expandindo, e cada vez mais rápido? É justamente isso que os astrofísicos estão tentando resolver agora. Esses são os novos Desafios da Cosmologia Observacional. Essa aceleração é atribuída à Energia Escura, uma energia que existe no universo, mas que os físicos ainda não entendem como funciona. Além disso, hoje sabemos que quase toda a massa do universo é formada, na verdade por Matéria Escura, cuja natureza também é pouco compreendida (veja aqui um dos candidatos para compor a matéria escura). “Talvez seja necessário desenvolver uma ‘nova física’ para explicar esses fenômenos” finalizou o professor Eduardo Cypriano.
O Papos de Física é um evento mensal de divulgação científica realizado pelo ICTP-SAIFR, centro de pesquisa associado ao IFT-UNESP, no Tubaína Bar (R. Haddock Lobo, 74, Cerqueira César). Num ambiente descontraído e informal, físicos falam sobre os avanços da ciência e temas que despertam a curiosidade da população. Ao final de cada apresentação, o cientista convidado responde perguntas do público. A próxima edição acontecerá no dia 03 de outubro, e contará com a presença da professora Ilana Wainer (IO-USP), que falará sobre os “Efeitos Climáticos do Oceano”.
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Um matemático no mundo das vacas esféricas
Ganhador da Medalha Fields em 2006, Andrei Okounkov aposta nos aspectos lúdicos para popularizar a matemática e defende a colaboração como valor importante para pesquisa e ensino de ciências
Andrei Okounkov durante sua palestra no ICTP-SAIFR, no campus do IFT, Unesp.
Durante o último Congresso Internacional de Matemática (ICM), que aconteceu em agosto, no Rio de Janeiro, Andrei Okounkov foi informalmente eleito como autor da palestra mais bonita e legal. Doze anos depois de ter recebido a maior distinção de sua área, a medalha Fields, Okounkov enfrentou o desafio de apresentar a plenária da ICM, “Na encruzilhada da geometria enumerativa e da teoria das representações geométricas”, para pesquisadores de diferentes campos da matemática. Além de abstratas, geralmente, as apresentações em eventos do porte da ICM são muito específicas, mesmo para outros matemáticos. Okounkov, no entanto, sabe como cativar a audiência. Oportunamente, ele insere o assunto de forma divertida, usando imagens e anedotas. Ele defende o ensino e popularização da matemática usando a diversão como estratagema. Formado no contexto russo de ensino de ciências, Okounkov chegou à matemática depois de passar pela economia, e não pela via tradicional das olimpíadas científicas. O matemático deixou a Rússia em anos difíceis para pesquisar nos EUA, passou por Princeton, e, atualmente divide seu tempo entre a Universidade Colúmbia, em Nova Iorque, e Moscou. O matemático enfatiza o trabalho árduo, a discussão com os pares e a colaboração como valores mais significativos para o sucesso na pesquisa, e nesse espírito prepara-se para receber a ICM, daqui a quatro anos, em São Petersburgo, capital cultural da Rússia. Durante sua estada no Brasil, Okounkov também participou de conferências satélites da ICM, como o Workshop em Física Matemática, no ICTP-SAIFR, sediado no IFT-UNESP, em São Paulo. Para ele, a matemática oferece a linguagem para descrever as teorias físicas, como a teoria de cordas e gravidade quântica.
Existe um imaginário escolar de que matemática é sinônimo de tormento…
A matemática não é um monstro, mas, de fato, é muito complexa. Acho que uma boa parte da sociedade é curiosa sobre matemática. Para estudantes e público, em geral, é muito importante a maneira como os matemáticos projetam a sua mensagem, o que é verdade não apenas para a matemática, mas para as outras ciências. As questões da ciência e da matemática constituem a essência da nossa vida. A ciência é o centro do que faz a sociedade funcionar. É muito importante despertar o interesse das crianças por esses temas.
Existe algo de diferente no ambiente cultural e intelectual russo quanto ao ensino de ciências e matemática? Como isso influenciou sua aproximação com a pesquisa?
Eu comecei na economia. Mas eu gostava mais de matemática, então mudei de área. Na Rússia, entretanto, há uma grande tradição dos Círculos de Matemática, Química, Física e as Olimpíadas Científicas, que, a meu ver, são uma contribuição para estimular nas crianças o gosto por matemática e ciências. Nesses ambientes, as crianças são desafiadas com problemas, enigmas, experimentos, bem diferente de fazer um dever de casa. Tanto nesses círculos como nas olimpíadas, as crianças estão em contato umas com as outras, com professores. A competição, até certo ponto, pode ser estimulante, mas não deve ser tratada como central. No processo de aprendizagem, recebe-se tanto dos professores quanto dos pares. O mais importante nessas experiências, é o elemento do desafio porque nem todas as pessoas serão capazes de resolver todos os problemas, o que também acontece entre os matemáticos.
Além dessa componente do desafio, como despertar o interesse escolar das crianças pela matemática?
Um bom professor ajuda nesse sentido, mas as crianças tem que ter outros estímulos para continuar aprendendo. No caso da matemática, deveria ser mais divertida, mais como uma descoberta e menos obrigatória. Poderia ser apresentada como a música. Todos podem apreciar uma música tocada no violino, mas não será obrigado a tocar o instrumento. Da mesma maneira, nem todo mundo terá treinamento formal em matemática. Seria traumático se fosse obrigatório tocar violino na escola.
Quando se trata de aproximação com o grande público, como a matemática se compara a outras ciências?
Quando o que se tenta explicar é uma coisa extremamente complexa, surge o problema da falta de precisão. Não é intrinsecamente mais difícil divulgar matemática porque há certos temas, como teoria dos números, que poderiam ser explicados para qualquer um. Além de serem fáceis, são divertidos. Tomemos o exemplo da biologia, que também é uma área extremamente complexa, cheia de nomenclaturas complicadas, que podem demandar anos de aprendizado. Os biólogos fazem um trabalho melhor comunicando a biologia do que os matemáticos. Diria que a situação com a matemática não é muito diferente, mas os matemáticos precisam encontrar um caminho para se comunicar com a sociedade e mostrar que a complexidade da matemática pode ser algo excitante.
Qual o papel da matemática na sociedade?
A sociedade é uma coisa complicada. Mas a relação da matemática e das ciências com a sociedade e com nossas vidas se manifesta nas questões da tecnologia. Os telefones celulares que as pessoas usam cotidianamente têm por trás uma ciência avançada. Alguns abraçam as mudanças tecnológicas enquanto outros se distanciam delas. Estou muito preocupado sobre o futuro da relação tecnologia-sociedade porque, talvez, nem todos serão capazes de participar e trabalhar no mundo tecnológico. Algumas pessoas serão o que se pode comparar a um analfabeto do século passado. É possível ser um membro de valor da sociedade sem saber matemática e ciências, mas, minha preocupação é como isso vai acontecer ou como vai se desdobrar no futuro.
No futuro, os computadores serão melhores matemáticos que os humanos?
Depende da definição de matemática adotada. Se for uma lista de procedimentos a serem memorizados, os computadores serão melhores em qualquer coisa que possa ser formalizada. Nós temos que abraçar essas mudanças. Não podemos lamentar o fato de que os carros são mais rápidos do que os humanos porque, afinal, a utilidade dos carros reside exatamente em serem mais rápidos. Há muitos fenômenos complexos na natureza que não podem ser desvendados sem a ajuda dos computadores, eles podem representar um número de cenários muito grande em muito menos tempo que nós. É difícil dizer algo sobre a equação de Einstein sem a ajuda dos computadores. Mas lembro que a matemática não é apenas uma lista de processos a serem memorizados.
O que distingue os humanos no fazer da matemática?
Criatividade. Talvez criatividade não seja a melhor palavra, mas, sim, descoberta. O processo de descoberta na matemática é algo surpreendente. Os matemáticos não ficam sentados em seus escritórios tirando ideias brilhantes do nada. Eles têm de pensar em múltiplos exemplos, desenvolver a intuição e trabalhar em uma conjectura geral.
Pode-se dizer que há uma habilidade especial para ir bem em matemática?
O treinamento define mais como se vai em matemática do que qualquer habilidade especial. Acho que não há uma tarefa específica que permita um bom desempenho em matemática. O que se precisa da memorização, por exemplo, é fazer uma ou outra multiplicação, mas uma calculadora faz isso melhor. A matemática tem muitos sabores, o cálculo diferencial e integral é apenas um. Em geral, é melhor começar com um panorama, mas algumas pessoas pensam mais geometricamente, enquanto outras mais algebricamente. O que frequentemente acontece é que elas passam primeiro pelo treinamento básico e, se quiserem aprender um sabor totalmente diferente, tem que desenvolver uma maneira de juntar os sabores, correlacionar ideias adquiridas previamente.
Sobre o que é a matemática?
A matemática é uma ótima forma de organizar ideias, procurar um princípio ordenador por trás de um determinado problema, ou de muitos problemas de determinado tipo. Ao invés de focar em características particulares e detalhes, a matemática busca princípios gerais. Talvez, outra maneira de entender isso seria dizer que em matemática não se pensa em um problema de forma muito concreta. Um dos meus professores diz que a chave para resolver qualquer problema em matemática é remover toda a informação desnecessária.
Há muitas anedotas sobre a forma não-realista como matemáticos e físicos interpretam a realidade para investigá-la…
As semelhanças no modo de matemáticos e físicos encararem a realidade relacionam-se ao fato de que a realidade não reside em seus aspectos peculiares, é preciso remover e descartar características para investigá-la. Há muitos níveis nos quais se pode dizer algo verdadeiro sobre uma determinada coisa, por exemplo, sobre o volume de uma vaca. Considerar o nome de uma determinada vaca adiciona complicações à investigação sobre seu volume porque, então, leva à perguntas particulares sobre todas as outras vacas. Tanto os matemáticos como os físicos buscam os aspectos mais gerais possíveis para descrever uma vaca e daí surgem as anedotas.
Matemática é ciência?
Sem dúvida. E é arte. Mas ciência também é arte. Matemática não é como um laboratório de química, onde coisas são misturadas, previsões feitas e se espera pra ver o resultado. Matemática é relacionada a curiosidade humana, ao desejo de sistematizar o mundo e trazer uma noção geral sobre como ele é construído, como se desenvolve. Mas ainda sobra lugar para a poesia e a beleza.
E quanto a interação da matemática com a biologia?
Ao interagir com pessoas de fora da matemática, elas, frequentemente, perguntam sobre a solução de uma equação específica ou como resolver determinado problema tendo em vista propriedades particulares. Mas é muito mais fácil pensar nas propriedades mais gerais dos problemas porque isso força o pensamento para termos mais fundamentais. É importante pensar nos tipos e lugares específicos, como na biologia, o tal inseto que voa em torno da tal flor. Os detalhes são muito bonitos, mas não são essenciais para resolver equações. Em matemática, procuramos o tipo certo de generalidade, o que implica descartar insetos e flores.
Qual a contribuição mais importante da matemática para o pensamento humano?
Diria que é a noção de que o livro da natureza está escrito em símbolos matemáticos, como na conhecida citação de Galileu Galilei. Não há dúvidas sobre isso. A noção intrínseca da ciência moderna é que ela requer uma matemática complicada e, talvez, isso seja devastador para um indivíduo, mas nem tanto quando se considera a comunidade científica e o poder computacional.
Sua plenária na ICM foi elogiada por ser visualmente bonita. Em algumas passagens de uma palestra sua sobre monodromia, um tema desconhecido mesmo de matemáticos, você arranca risadas da audiência.
Monodromia é o estudo do comportamento de funções definidas em torno de singularidades. Escadas em espiral são uma boa forma de ilustrar a situação. No alto de uma escada, tem-se uma função, no andar inferior, tem-se outra função diferente. Um colega meu tem uma maneira muito engraçada de explicar a monodromia, que eu tomo emprestada: “Você sente que está andando em círculos e não chega a lugar algum? As coisas não devem ser tão ruins quanto parecem. Você deve estar chegando a algum lugar, mas não percebe isso por não estar ciente de sua monodromia pessoal”. Talvez, devêssemos pensar mais em nossa monodromia pessoal para entender o problema em matemática.
Você deixou a Rússia para ir para os EUA, mas agora passa parte do ano lá.
Houve tempos difíceis na Rússia em que foi difícil conciliar a vida pessoal e o trabalho como matemático. Mas agora há bons lugares para estudar na Rússia, eu passo cada vez mais tempo lá. Meu ano se divide entre Colúmbia e Rússia. Inclusive, a próxima “Copa do Mundo da Matemática” será na Rússia e estamos nos preparando para, além de oferecer uma ótima visita a todos os participantes, discutir a divulgação de matemática para o público leigo.
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O que sabemos que não sabemos?
Segundo o físico brasileiro André Luiz de Gouvêa, os misteriosos neutrinos podem ser a chave para resolver o problema da quantidade de matéria no universo
Há uma diferença gritante entre a quantidade de massa total observada no Universo e o que é previsto pelos modelos teóricos. Medidas da radiação cósmica de fundo – um tipo de fóssil do Big Bang – indicam que há cinco vezes mais matéria que não interage com fótons do que de matéria que interage com fótons, levando os físicos a cogitarem a existência de uma matéria, que não interage com a luz; a matéria escura. Muitas teorias e experimentos em física estão sendo projetados para solucionar essa questão da cosmologia. Formado em física pela PUC-Rio, o carioca André Luiz de Gouvêa dedica-se a esse tipo de dilema. Ele teve passagens pelo Fermilab, Lafex, CERN (Suíça) e, atualmente, é professor da Universidade Northwestern, nos EUA, e membro do conselho científico do ICTP-SAIFR, desde o início de 2018. Recentemente, Gouvêa analisou a sensibilidade de grandes experimentos da física de partículas, o DUNE e o Hyper-Kamiokande, com o objetivo de detectar interações específicas de neutrinos e antineutrinos. Entre os dias 23 de julho e 3 de agosto, o pesquisador esteve em São Paulo participando da Escola de detecção de neutrinos e matéria escura, do ICTP-SAIFR|IFT-UNESP. Ele falou sobre “o que sabemos que não sabemos”, na fronteira da física de partículas e neutrinos, e ofereceu perspectivas sobre a tão esperada detecção da matéria escura.
Como foi sua trajetória entre a graduação em física e o interesse por física de partículas?
Comecei a me interessar pela parte experimental de física de partículas. As vantagens de ser experimental é que você pode contribuir mais como aluno de graduação e mestrado. Quando fui pra fora do Brasil, para o doutorado, é que comecei a trabalhar com fenomenologia, modelos super simétricos e outros temas populares. Naquela época, surgiam modelos novos de neutrinos e, então, trabalhar com teoria era interessante porque tentávamos antecipar o que as próximas experiências poderiam medir.
Os físicos pensam as partículas como objetos clássicos, como pontos e bolinhas, ou como ondas?
Em física, usamos uma linguagem matemática para descrever as partículas. E, mesmo para nós, em várias situações, as partículas lembram objetos clássicos como pontos. Toda vez que elas se manifestam de forma mais palpável nos detectores, a impressão é de que cada partícula é um ponto. Mas a matemática que se usa para traçar o caminho das partículas é ondulatória.
E os neutrinos, o que são?
Os neutrinos (e também os fótons) são as partículas mais abundantes do Universo. Há 1 bilhão de vezes mais fótons e neutrinos que prótons e elétrons! Somos bombardeados com neutrinos a uma taxa de 100 bilhões por segundo. Eles não têm carga elétrica, como os elétrons, e interagem muito pouco.
Como é então possível detectá-los?
Os neutrinos têm uma outra propriedade – associada a maneira como reagem à força nuclear Fraca – que chamamos de “sabor”. Hoje sabemos que, de acordo com os sabores, podemos classificar os neutrinos em três tipos: o neutrino-múon, neutrino-tau e neutrino-elétron. Mas chegar até isso foi um longo e árduo caminho. Na década de 60, por exemplo, as primeiras medidas do fluxo de neutrinos produzidos no Sol, não batiam com as previsões teóricas. Esse assunto só foi resolvido na virada do século quando ficou estabelecido que o neutrino pode mudar de sabor enquanto se propaga. Estes resultados responderam perguntas fundamentais que tínhamos sobre os neutrinos – “Eles têm massa?”; “Eles oscilam de um sabor para o outro?” e convidam outras perguntas mais fundamentais – “Por que eles têm massa?”; “Como eles oscilam de um sabor para o outro?”.
Quais foram os experimentos que confirmaram as propriedades dos neutrinos?
Dentre esses experimentos, estão o KamLAND e o Super-Kamiokande, ambos no Japão, e o SNO [Sudbury Neutrino Observatory], no Canadá. Com dados do SNO e do KamLAND, conseguimos explicar a questão dos neutrinos do Sol. Os primeiros resultados do Super-Kamiokande, anunciado em 1998, revelaram que os neutrinos produzidos na atmosfera também podem alterar suas identidades, oscilando entre os sabores. Essas descobertas renderam o prêmio Nobel de física de 2015 às colaborações Super-Kamiokande e SNO. A comprovação foi decisiva para a física de neutrinos porque a consequência da oscilação entre os sabores é que eles têm massa.
O que diferencia partículas que têm massa de partículas sem massa?
Se recorrermos à relatividade restrita – que trata de partículas que se movem próximas da velocidade da luz -, fica mais fácil entender essa diferença. Do ponto de vista das partículas sem massa, como as partículas da luz – os fótons -, qualquer distância no Universo é infinitamente pequena, o que equivale dizer que elas chegam simultaneamente a qualquer lugar. Uma partícula com massa, como o neutrino-elétron, sabe distinguir tempos curtos de tempos longos, “ele enxerga as distâncias”.
Quando se detecta um neutrino, é possível dizer para qual dos sabores se está olhando?
Na prática, toda vez que se detecta um neutrino, não se consegue determinar qual sua massa, só é possível medir o seu sabor. Por exemplo, um neutrino-elétron produzido em São Paulo seria detectado em Salvador já com outro sabor. Os neutrinos mudam de sabor ao longo do tempo com uma probabilidade que pode ser calculada.
Como é o mecanismo que leva os neutrinos a mudar de sabor?
Temos que olhar para cada um dos sabores das partículas e associar a eles uma onda. Essa onda é uma mistura de três ondas distintas, associadas aos neutrinos com massa. O fenômeno pode ser então entendido como interferência de ondas.
Qual o papel da massa no mecanismo de oscilação dos neutrinos?
Agora que sabemos que os neutrinos têm massa, podemos classificá-los de acordo com o valor da massa. Digamos, um neutrino com massa 1, outro com massa 2, e um terceiro com massa 3. Mas não é possível associar massas e sabores de maneira clássica. O neutrino-elétron, por exemplo, não é uma partícula, mas uma mistura quântica de partículas com massas bem definidas e isso vale para os outros sabores. Cada uma das componentes com massa bem definida tem uma velocidade ligeiramente diferente, mas frequências bem próximas. O que faz o neutrino oscilar é que, durante o tempo em que ele viaja de um lugar a outro, as ondas correspondentes a eles se propagam de forma distinta, e a combinação delas – o que define o sabor – muda com o tempo.
As antipartículas dos neutrinos, os antineutrinos, oscilam da mesma forma?
Podemos entender essa pergunta da seguinte maneira: se a probabilidade de um neutrino de sabor A ser medido como um neutrino de sabor B (diferente de A) é igual a probabilidade de um anti-neutrino de sabor A ser medido como um antineutrino de sabor B. Os físicos se referem a esse fenômeno como a violação da simetria CP entre os neutrinos. Hoje, nós não sabemos a resposta apesar de haver fraca evidência que a simetria CP é violada entre os neutrinos.
Quais as contribuições esperadas dos experimentos DUNE e Hyper Kamiokande nessas questões?
Um dos objetivos principais dos projetos DUNE e Hyper-Kamiokande é descobrir de forma clara se os neutrinos respeitam a simetria CP. O que eles querem estabelecer é se a probabilidade de um neutrino de sabor A ser medido como um neutrino de sabor B (diferente de A) é igual a probabilidade de um antineutrino de sabor A ser medido como um antineutrino de sabor B. Na prática “sabor A” é o sabor muônico (relacionado ao muon), “sabor B” é o sabor eletrônico (relacionado ao elétron).
Os neutrinos são candidatos a matéria escura?
Sim. Mas, apesar de serem muito abundantes, os neutrinos têm uma massa pequena demais. Há muitos candidatos, no entanto. Uma das hipótese mais estudada é que a matéria escura seja formada por partículas que chamamos de WIMPS – Weakly Interacting Massive Particles -, que interagem fracamente.
A matéria escura obedece a quais princípios da física?
A matéria escura interage gravitacionalmente. Quer dizer, as leis da gravidade de Newton e Einstein também se aplicam à ela. Ela está se expandindo junto com o resto do Universo e também obedece ao princípio do aumento da entropia total do Universo, a Segunda Lei da Termodinâmica. No entanto, todas as outras informações que temos sobre ela, a distinguem da matéria bariônica – composta por bárions, partículas como prótons e elétrons, e que interagem com a luz.
Como seria possível medir a matéria escura?
Partículas como os WIMPS interagem fracamente com núcleos de átomos de detectores. Uma maneira seria construir detectores super-precisos e observar a passagem de uma partícula de matéria escura, causando uma leve movimentação nos núcleos dos átomos dos detectores, na Terra. Observar se os detectores se mexem “sozinhos”.
E o neutrino estéril?
Ele é um novo tipo de partícula que está sendo cogitada. Apesar de interagirem muito pouco, são capazes de “conversar” com os outros neutrinos do modelo padrão. Se forem parte da matéria escura, eles decaem, bem devagar, em um neutrino e um fóton. Para detectá-los teria de se observar a emissão de raios-X de regiões do céu onde se supõe haver muitos neutrinos estéreis, como as galáxias anãs, usando um satélite, um balão ou um foguete.
Quais são as expectativas da comunidade para detectar a matéria escura?
Agora, a campanha experimental é grande, mas, se daqui há dez anos não encontrarem nada, é bom procurar outra resposta e algumas ideias teóricas serão revisitadas.
Há outras propostas além dela?
Matéria e energia escura são uma forma de parametrizar a nossa ignorância. É possível que haja algo bem simples e que ainda não sabemos. Um outro caminho seria modificar a própria teoria da gravidade.
Qual das das alternativas é mais simples?
Sem dúvida, os modelos de matéria escura geram menos complicação. O motivo disso, talvez, seja o conservadorismo dos físicos. Mas existem problemas quanto a mudar a gravidade. As coisas funcionam muito bem no sistema solar com a teoria gravitacional que temos hoje. A gravidade teria que ser modificada a nível da galáxia, aglomerados de galáxias, o efeito dessa gravidade nova será gigante. Colisão entre dois aglomerados de galáxia, nuvens de gás interestelar, o gás interage bastante, emite raios-X, o que acontece com a massa de galáxia? Depois da colisão as massas se afastam, mas o gás ficou para trás, mudando a lei da gravidade. A lei da gravidade não explica porque a massa está em um lugar e a gravidade está em outro.
E quanto a modificar os modelos físicos atuais?
Nós temos teorias que funcionam bem, e quando há resultados que não sabemos explicar, acrescentamos ingredientes novos. Por outro lado, a linguagem que usamos para descrever talvez tenha um erro fatal. É possível que, usando essa linguagem, seja impossível descrever o que estamos observando. Mudar a linguagem que a gente usa é muito difícil. O modelo atual é muito sofisticado e bem sucedido. Uma ideia nova com uma linguagem nova teria que ser igual ou melhor para se explicar tudo o que a gente já consegue explicar e mais o que não consegue.
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Estranhezas no mundo do muito pequeno
Pesquisador visitante do ICTP-SAIFR foi destaque da Sociedade Brasileira de Física pela pesquisa sobre estranhezas quânticas e cenários de inferência causal simples
No centro da foto Mário Leandro Aolita, no ICTP-SAIFR, que fica no campus da Barra Funda, do IFT-Unesp, durante o minicurso “Emaranhamento quântico: da informação quântica para além da física de muitos corpos”, que aconteceu entre 20 e 24 de agosto.
Um furacão ocorre depois de uma pequena perturbação na atmosfera terrestre; as pessoas adoecem porque são expostas a germes. A noção intuitiva de que os fenômenos decorrem de uma causa é importante em pesquisas científicas nas áreas de meteorologia e epidemiologia, por exemplo. Mas os contra intuitivos efeitos quânticos podem violar a ordem de inferência causal. Uma colaboração entre físicos italianos da Universidade de Sapienza Roma, o brasileiro Rafael Chaves do Instituto Internacional de Física, em Natal, no Rio Grande do Norte, e o visitante do ICTP-SAIFR, Mário Leandro Aolita, sediado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, demonstrou experimentalmente que, em um sistema formado por um par de fótons – partículas de luz -, ocorre uma transgressão dos chamados testes experimentais. Usados tipicamente na área de epidemiologia, esses testes estão relacionados à noção clássica de causalidade.
Os pesquisadores investigaram um modelo causal quântico em que o estado de dois fótons emaranhados – forma de correlação muito forte, possível só em sistemas quânticos – é a causa comum de outros dois eventos A e B. Nessa situação, as correlações induzidas entre esses eventos A e B são tão fortes que, mesmo se fossem simuladas com modelos causais clássicos, ou seja, sem emaranhamento, eles precisariam estar equipados com influências causais diretas de A para B (além de possíveis causas comuns clássicas).
O resultado, publicado pela revista científica Nature Physics, em dezembro de 2017, mostra que o emaranhamento quântico é, de certa forma, mais forte até do que influências causais diretas clássicas, abrindo perspectivas para uma abordagem mais simples do fenômeno quântico até então conhecido como “comunicação à distância” entre partículas. Repercussões do trabalho vão incorporar o desenvolvimento de novas tecnologias para a criptografia e informação quântica.
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